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bem vindo e bem vinda. este é um labirinto herege: um desafio para medir a astúcia de quem me visita; um convite à exploração sem mapas e vista desarmada. aqui todas as direções se equivalem. as datas das postagens são irrelevantes. a novidade nada tem a ver com uma linha do tempo. sua estrutura é combinatória. pode começar de onde quiser. seja de uma imagem, de um texto, de um vídeo ou mesmo de uma música. há uma infinidade de escolhas, para iniciar a exploração, para explorar esse território e para finalizá-la. aproveite.

colonização fálica - ou a civilização pelo estupro


o estupro foi a primeira prática do processo europeu de civilização por estas terras. práxis erótico-pedagógica violenta de modernização pelo domínio dos corpos. subsumir sexualmente a indígena. invasores espanhóis e portugueses abandonaram a europa “civilizada” para viver aqui em poligamia perversa: sexualidade puramente masculina, opressora, alienante e injusta. sob a cruz e a espada trouxeram para cá a colonização fálica do conquistador: símbolos da racionalidade cujos usos são a própria violência sacrificadora: morte e desolação por ouro, prata e pedras preciosas. o indivíduo que chega com as caravelas, chega violento, guerreiro moderno, de moral dupla: dominação sexual da indígena (considerada primitiva, rústica e inferior) e aparente respeito à mulher da europa (considerada moderna, civilizada e temente à deus). frei manuel calado (1584 - 1654) foi o primeiro a mencionar em seus textos, no brasil, essa moralidade dupla do macho colonizador: “os estupros e o adultério eram moedas correntes...”.  outro testemunho, uma coletânea minuciosa dessa poligamia perversa colonizatória e práxis erótico-pedagógica violenta são os arquivos da primeira visitação do santo ofício ao brasil, entre os anos de 1591 e 1592. os estupros “civilizatórios” eram tão comuns, que eram considerados pelos colonizadores algo corriqueiro, banal e até jocoso. como podemos ver, por exemplo, nos próprios  relatos de viagens e de um tal viajante francês jean moucquet (1575), ou mesmo de um tal bandeirante paulista sebastião pinheiro raposo (1640).

enrique dussel em seu livro 1492 também descreve o que ele chama de colonização do ego fálico: “o conquistador mata o varão índio violentamente ou o reduz à escravidão, e estupra a indígena ainda na presença do varão índio, em seguida se ‘amanceba’ com elas”. a cada estupro, índios e índias têm a obrigação de negar seus direitos, sua própria civilização, seu mundo, sua religiosidade em nome de um deus estrangeiro e de uma burocracia invasora. a cruz e a espada dão aos pênis entumecidos dos conquistadores a legitimação de conquista pelo estupro. a cruz culpabiliza a indígena pelo crime do estupro. primeiramente por estarem nuas, depois por não terem a castração da moralidade cristã como vício. algo que persiste nas mentalidades brasileiras até os dias de hoje (século xxi), na insistência cultural machista-judaico-cristã de responsabilizar a vítima do estupro como provocadora do crime cometido contra ela; seja pelo modo que vestem ou pelo lugar e hora que transitam sozinhas. a espada justifica a violência civilizatória como enfrentamento “necessário” contra a “barbárie primitiva” (nudez e ausência de trabalho) dos indígenas e como garantia da riqueza conquistada (pilhagem de ouro, prata e pedras preciosas em um primeiro momento e em seguida, as monoculturas da cana-de-açúcar, do café e do tabaco juntamente com a criação de víveres). ambas às vontades e aos caprichos dos senhores. 

perversamente, as indígenas não foram as únicas estupradas em nome da colonização/civilização. as mulheres africanas também foram vítimas da mesma práxis erótico-pedagógica violenta de modernização: já subjugada e estuprada em sua terra natal, a mulher africana era traga para cá em um processo continuo de violação. conquistas jamais são foram feitas sem estupro e genocídio. mas isso não os tornam um mal abstrato generalizante da condição humana atribuído cinicamente à qualquer condição de “guerra”. é um mal concreto exclusivo tanto das lideranças quanto de seus liderados estupradores e genocidas. se na história humana os europeus foram hábeis em coisificar pessoas como mercadorias, é na figura da mulher africana que a situação alça seus voos mais altos de crueldade. africanas tragas à força para a américa, eram desnudadas e colocadas em mercados para serem vendidas e marcadas com fogo, após terem seus corpos minuciosamente apalpados por diversos possíveis compradores. como descreve, por exemplo, o padre fernando de oliveira em seu livro arte da guerra do mar (1555), ou a coletânea de textos de ana barradas, ministros da noite, livro negro da expansão portuguesa (1995). após serem apalpadas e compradas eram levadas para as fazendas e logo submetidas ao estupro continuado de seus senhores. nas palavras de paulo padro em seu ensaio sobre a tristeza brasileira de 1928: “só o macho contava. a mulher, acessório de valor relativo, era a besta de carga, sem direitos e proveitos, ou o fator incidental da vida doméstica”. são inúmeros os relatos, que vão até décadas depois da abolição da escravatura no brasil, feitos pelas autoridades cristãs e militares insistindo em descrever as mulheres africanas como lascivas e instigadoras do estupro para justificar as atrocidades de seus congregados. primeiro como um fator étnico-cultural (“a dança em seus movimentos corporais e agilidades nos pés cuja motivação é a satisfação depravada de apetites libidinosos”. – cavazzi, 1687) depois como escrava (“nem era preciso violência para estuprar as cativas, tal era o medo que nos tinham”. – soldado português josé da costa, 1961 em angola). 

não há como romantizar a mestiçagem ou mesmo ocultar em livros ufanistas que a formação do povo afro-ameríndio teve como gênesis o estupro: miscigenação violenta e não consentida. mistura étnica em meio aos holocaustos/pachakutis/porajmos/mba’e-meguâs indígenas e africanos. gênesis de bastardos e mais bastardas, por um lado envergonhadas/os pelos crimes ocorridos contra suas mães (não serem proprietárias de seus próprios corpos e espíritos), melancólicos/as, envolvidas/os numa triste luta (pois lutará contra parte de seu sangue) e, por outro, ansiosos/as e altivas/os por estabelecerem elos mais duradouros com seus senhores estupradores pais (homem moderno, prático, ativo e capaz de impor sua individualidade violenta à outas pessoas). destinadas/os a viver cotidianamente com esse paradoxo escarlate. mestiços e mestiças muitas vezes odiadas por indígenas e sempre despreciados pelos europeus por não serem brancos. filhas e filhos que erram (na maior parte do tempo voluntariamente e insistindo conscientemente no erro): em não alcançarem a liberdade em quilombos, nem nos imaginários indígenas; em assumir sua identidade como europeus de segundo escalão (elites hegemonizadoras); em não ter incluído nos projetos nacionais de emancipação, indígenas e negros/as (concepção de cidadãs/os abstratos/as, individualistas e burgueses); em viver na condição sacrificial de um modelo de vida pretensamente híbrido e equilibrado (ocultação do passado para, grego-messianicamente, se começar do zero ou vangloriarem-se como frutos de um “encontro em culturas” ou de um “diálogo intercultural”); em pretenderem ser modernos/as ou mesmo pós-modernas/os (assumir que a história tem seu início, meio e fim na europa).

é preciso que nós, filhos e filhas bastardas, revisemos a falácia desenvolvimentista de que, o que passou, passou. ainda vivemos sobre as terras de cemanáhuac, abia yala, tahuantisuyo, pindorama, piratininga e seguindo em direção a tekkoha. ainda vivemos sob os mesmos processos históricos há meio milênio só que de modo geográfico: implantação, consolidação e reestruturação do sistema colonial em alguns lugares; noutros a “paz” colonial, a expansão latifundista e a modernização dependente. é preciso abandonar o sonho de fácil unificação. ainda vivemos sob a cruz e a espada. é preciso lembrar que, apesar de estupradas, indígenas e africanas continuam a resistirem; continuam a criar movimentos insurrecionais; a dar continuidade a movimentos de insubordinações; de lutar contra o sequestro de seus discursos e corpos. somente nos primeiros momentos humilhantes após o estupro, a indígena e a africana se expressaram predominantemente de modo oral e interno ao seu meio. somente nos primeiros momentos humilhantes após o estupro, optaram por uma estratégia defensiva que as permitiram conservar uma autonomia relativa e daí nos criar. apesar das aparências jamais deixaram de atuar como protagonistas em uma história que lhes pertenciam somente em parte: por vezes uma parte muito mínima. debilitadas e marginalizadas reorganizaram, bem ou mal, as suas e as nossas vidas e autonomias relativas certamente em um marco incômodo e desvantajoso em que seus estupradores lhe ofereceram. 

é hora de dar um basta no ficar justificando, ou positivando, as razões de se fazer a opção histórica de se estar sempre do lado do pai estuprador! é hora de dar um fim a toda esse permanente holocausto/pachakuti/porajmo/mba’e-meguâ erótico violento que persiste até os dias de hoje. optemos por um grande basta afetivo e epistemológico! optemos por um grande revisionismo insurgente!

pequeno vocabulário:

abia yala: território cultural dos kunas.
cemanáhuac: território cultural dos astecas.
pachakuti: hecatombe radical que anuncia o fim de um sol (ciclo de existência) 
porajmos: literalmente "devorar". o termo usado pelo povo cigano rom para descrever o holocausto que sofreram na       alemanha nazista. 
mba’e meguâ: o “mal absoluto” para os guaranis. um lugar onde não se pode mais reproduzir suas vidas bem como escolher qual direção tomar.
tahuantisuyo: território cultural dos incas.
tekkoha: lugares onde guaranis abrem na selva para construir sua aldeia, para realizar sua agricultura e viver culturalmente.
pindorama: território cultural de várias etnias indígenas “brasileiras” de matriz tupi.
piratininga: outro nome para o território cultural de várias etnias indígenas “brasileiras” de matriz tupi. 

4 Comentários:

disse...

Léo...
Que texto maravilhoso!
Lúcido, pontual, preciso, vigoroso.
Precisamos saber que a tão da (tão querida) miscigenação teve uma origem perversa, estuprante.
Vou partilhar.

Abraços insurgentes,
wanderson

Alice disse...

o casamento é a maior forma de colonização
a mulher vai perdendo sua identidade
em prol do pai, da sociedade
pelos filhos, sua cultura

Mulher
se preocupa
o marginal
que estupra
sua filha
se preocupa
o playboy
que estupra
a moça tida
como puta
o europeu
que estupra
a índia que
estava nua
estupra
porque a saia
era curta
porque o baile
era funk
o PM que estupra
minha mãe
é índia
sua filha
é negra
nossa pátria
nossa culpa

Alice disse...

Valeu Léo, esse teu artigo me ajudou a pensar várias coisas. Fiz um poema inspirado. http://artefaros.blogspot.com.br/2015/12/primeiroassedio-do-genero-feminino.html

Curiosidades históricas disse...

A título de sugestão e complemento desse artigo, dá uma olhada em:
http://www.fatoscuriososdahistoria.com/2016/05/como-tratava-estupro-1883.html

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quando falamos "eu penso que...", quem será que escondendo? a voz do pai? da mãe? dos/as professores/as? padres? policiais? da moral burguesa ou proletária? ou as idéias de alguém que já lemos? escutamos? ou...
 
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